Mamadu Seide, a 11 de Janeiro de 2022.

Para os fins deste ensaio, considera-se igualdade à ausência de injustiça, de privilégios odiosos entre as pessoas. Trata-se duma característica de comparação que exige que as pessoas sejam tratadas com indiferença. É consagrada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, mediante a seguinte redação: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos, dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”(artigo 1º). O artigo 26 do documento citado garante a todos os cidadãos o direito à educação em igualdade de condições, elegendo o mérito como o único critério de diferenciação. O direito a igualdade, em suas mais diversas dimensões, também conquistou o prestígio do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos [1] e da Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra mulher de 1979[2].

No âmbito regional, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos estabelece, em seu artigo 17, que todas as pessoas têm direito à educação, direito esse que consiste na possibilidade de participar livremente da vida intelectual e cultural da comunidade, independentemente dos particularismos (raça, religião, credo, gênero). Mencione-se também o protocolo facultativo da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDAO) DE 2000; protocolo da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos relativos aos Direitos das Mulheres em África, entre outras.

A Guiné-Bissau, Estado signatário das leis internacionais e regionais de proteção dos direitos humanos supracitados, declara em sua Constituição (artigo 24) que todos os cidadãos são iguais perante a lei, devendo, por essa razão, usufruir dos mesmos direitos e serem sujeitos aos mesmos deveres indistintamente. O artigo 25 de Lei Maior guineense, que trata especificamente da igualdade, estabelece que o homem e a mulher são iguais em todos os domínios da vida política, econômica, social e cultural. Isso significa que as autoridades públicas e privadas não podem e nem devem adotar a lógica de sexualidade no desenvolvimento
de suas atividades, não podendo garantir privilégios a uma categoria em detrimento da outra.


A educação, um dos direitos humanos mais importante, também é consagrada constitucionalmente pela Guiné-Bissau. No Capítulo em que trata de direitos, garantias e liberdades, a Constituição guineense consagra a educação como um direito de todas às pessoas, impondo ao poder público o dever de adotar as medidas necessárias a fim de efetiva-lo. De acordo com a Lei Maior, a educação é um direito de todos e, como tal, deve ser garantido, respeitado e protegido sem discriminação, principalmente de natureza sexual, devendo as mulheres gozarem de iguais oportunidades e condições com os homens em todas as esferas da vida, dentre elas, a educação.

É sabido, todavia, que não basta declarar os direitos humanos para cumprir os objetivos para os quais foram declarados, mas sim devem ser concretizados. O Estado, o principal destinatário das normas dos direitos humanos, tem a obrigação de colocar à disposição dos cidadãos mecanismos a fim de que possam fazer valer seus direitos na prática. Esse tem sido o grande desafio das autoridades guineenses. Em que pese a evolução legislativa em matéria dos  direitos humanos, questões como fome, miséria, opressão, discriminação, desigualdade de gênero ainda continuam atormentado a vida de um número significativo de população guineense. Tal situação ocorre em razão da inação do Estado guineense, cuja estrutura mostra-se insuficiente para garantir aos seus cidadãos condições para exercer os mínimos direitos da cidadania.

A educação é um dos campos em que a omissão do Estado guineense se manifesta do modo mais evidente e intenso. A evidência disso nos é fornecida pela posição da Guiné-Bissau (178 dos 189 países analisados) no índice de desenvolvimento humano (IDH), com um índice médio (0,455) bem abaixo da média dos países da África e África Subsaariana (0,537), segundo a revisão período universal do Conselho dos Direitos Humanos da ONU( CDHONU), publicada em 2020. De acordo com o relatório da CDHONU, entre 1990 e 2018, a esperança de vida à nascença aumentou 10,9 anos. A média de tempo de escolaridade aumentou em um ano e a expectativa de escolaridade em 6,8 anos [3].

Quando se coloca em jogo a situação das mulheres, os números são mais alarmantes ainda. A Guiné-Bissau possui uma taxa total de alfabetização de 59.9%, num universo de pouco mais de um milhão de pessoas, conforme os dados da UNESCO para 2015. Dentro da população guineense, 71.8% dos homens são alfabetizados contra 48.3% das mulheres [4] . Enquanto homens podem ir para à escola, essas mulheres são incumbidas, na maioria das vezes, a função de cuidar de lar. A esse fato acrescenta-se à violência doméstica [5] (física, psicológica e moral), de que são vítimas grande número de mulheres guineenses, comprometendo o pleno desenvolvimento de suas potencialidades, tornando ainda mais remota a possibilidade de ocuparem os lugares do poder.

Um dos, senão, o principal obstáculo ao acesso à educação para as mulheres guineenses é o casamento forçado [6]. Trata-se de uma prática que raramente ocorre nas grandes cidades, mas que acontece sistematicamente nas zonas rurais do país, cujos habitantes possuem baixo nível de instrução e pouca informação. As meninas, frequentemente, são retiradas da escola ainda no ensino básico para serem dadas em casamento, geralmente, contra a sua vontade. De acordo com o estudo do Instituto Nacional de Pesquisa (INEP), o casamento forçado ocorre com maior frequência no norte do país, evolvendo, em algumas circunstâncias, meninas menores da idade.

O casamento forçado é também uma prática corriqueira no leste da Guiné-Bissau. Na região de Bafatá, concretamente, ao narrar sua história, uma jovem conta que sua tia tentou tirá-la da escola para dá-la em casamento. “Eu recusei, disse à minha tia que não vou casar, vou continuar a minha escola, fomos até a polícia, depois encaminharam o caso para tribunal. No tribunal disseram que eu era menor, e dar uma menor em casamento é crime. Perdi aquele ano letivo, mas no ano seguinte continuei e já terminei o meu 12º ano” [7], disse a menina com orgulho.

Ao casamento forçado acrescenta-se à gravidez precoce como fator que comprometem à educação feminina na Guiné-Bissau. Número significativo de meninas guineenses, dada a falta de capacidade financeira de seu núcleo familiar, acabam se vendo obrigadas a se envolver com homens mais velhos e comprometidos, visando melhores condições de sobrevivência. Muitas delas, quando gravidas, abandonam a escola para se dedicarem a criação dos filhos, uma vez que, não raras vezes, são deixadas a própria sorte pelos país das crianças [8].

Em vista do acima exposto, é lítico afirmar que a educação constitui um privilégio para as mulheres guineenses. Artemisa Monteiro, em sua tese de doutorado, escreveu: […] eu era uma das pessoas privilegiadas no universo feminino na Guiné- Bissau, por ter conseguido seguir e cumprir as etapas acadêmicas e chegar ao nível do doutorado, num país em que a educação superior ainda constitui o privilégio de poucos, e nesse universo de privilégios, as mulheres ainda constituem a minoria [9].

Observa-se, portanto, que as mulheres guineenses enfrentam vários empecilhos para terem acesso à educação; não gozando das mesmas oportunidades que os homens no acesso à escola. Sem embargo do esforço do Estado guineense de reconhecer a igualdade entre os seus cidadãos em todos os domínios da vida, as autoridades nacionais têm falhado no que se refere à adoção de políticas públicas adequadas para a efetivação desse direito. Daí a gritante marginalização das mulheres em várias esferas da sociedade guineense, principalmente no campo do direito à educação.

 


[1] ARTIGO 3: Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a assegurar a homens e mulheres igualdade no gozo de todos os direitos civis e políticos enunciados no presente Pacto.

[2] Artigo 1º: Para os fins da presente Convenção, a expressão “discriminação contra a mulher” significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.

[3] Disponível em:<< https://news.un.org/pt/story/2018/12/1651531>>.Acesso em:05.Dez.2021.

[4] Disponível em:<< https://www.voaportugues.com/a/mulheres-dia-internacionalalfabetizacao/2952318.html>>.Acesso em: 05. Dez.2021.

[5] Ver: <<https://www.dw.com/pt-002/maioria-das-guineenses-j%C3%A1-foi-v%C3%ADtima-de-algum-tipo-deviol%C3%AAncia-revela-estudo/a-59929407>>

[6] Ver: << https://observador.pt/2020/10/16/casamentos-forcados-e-incestos-aumentaram-na-guine-bissau/>>

[7] Disponível em:<< https://uniogbis.unmissions.org/pt/guin%C3%A9-bissau-consegue-atingir-metainternacional-de-alfabetiza%C3%A7%C3%A3o-se-continuar-ao-ritmo-actual>>.Acesso em: 04. Dez.2021.

[8] Para maiores informações ver “Histórias de mães adolescentes na Guiné-Bissau: contributo para a construção de um modelo intercultural da gravidez na adolescência Disponível em: <<https://eg.uc.pt/bitstream/10316/32644/1/TESE%20MIP%20-%20Jacinira%20Carlos%20Nhaga%20%202016.pdf>>>.

[9] MONTEIRO, Artemisa. GUINÉ-BISSAU: Da Luta Armada à Construção do Estado Nacional -Conexões entre o Discurso de Unidade Nacional e Diversidade Étnica (1959- 1994). Disponível em:<<http://www.ppgcs.ufba.br/site/db/trabalhos/13102014095742.pd f>>. Acesso em: 6. Dez.2021.