Aua Baldé, a 23 de Agosto de 2021

A proteção supranacional de direitos humanos na África ocidental, pode dar-se não só a nível nacional, tanto a nível sub-regional (através do mecanismo que emana da CEDEAO) como regional (através da União Africana). Pese embora o facto destas duas organizações políticas serem distintas, o caso SERAP v. Nigéria ilustra como o sistema sub-regional pode recorrer aos instrumentos jurídicos consagrados a nível regional para uma proteção mais efetiva de direitos humanos dos cidadãos da África ocidental.

A Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) foi fundada em 1975 com um cariz fundamentalmente económico, visando promover o desenvolvimento económico dos seus membros através da cooperação, com vista a assegurar a elevação da qualidade de vida dos seus cidadãos. No entanto, nos inícios dos anos 90 procederam-se a reformas no âmbito da organização que se traduziram num maior compromisso para com a proteção de direitos humanos e valores democráticos, através, designadamente da adoção do Declaração de Princípios Políticos; da revisão do tratado fundador da organização, assim como do estabelecimento na prática do Tribunal de Justiça da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (Tribunal de Justiça da Comunidade).

Foi perante este tribunal que se discutiu o mais emblemático de proteção do direto à educação no continente africano: o SERAP v. Nigéria (1). O caso foi submetido pela Organização Não-Governamental (ONG) Socio-Economic Rights and Accountability Project (SERAP) – uma organização sediada em Lagos e que se dedica à promoção e proteção de direitos humanos, com especial ênfase nos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (DESC) e contra o Estado Nigeriano (primeiro demandado) e a Universal Basic Education Commission (UBEC) (segundo demandado). A queixa, com base num relatório produzido pela Independent Corrupt Practices Commission trouxe à luz do dia um caso de má gestão dos fundos relativos à educação básica e de corrupção massiva no sector de educação na Nigéria, resultando na violação do direito à educação de cerca de cinco milhos de crianças nigerianas. Com efeito, segundo SERAP o desvio de fundos para a educação teve consequência direta no gozo e fruição do direito à educação, na medida em que afetou não só a formação de professores, mas também a disponibilidade de recursos educacionais, incluindo livros. A SERAP alegou a violação não só da legislação interna do país, mas também dos preceitos da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, incluindo a violação do artigo 17.º que consagra o direito à educação, prevendo que “toda a pessoa tem direito à educação.”

Na sequência desta queixa, o Tribunal de Justiça da CEDEAO proferiu duas decisões paradigmáticas que contribuíram de forma significativa para a proteção de direitos humanos na África ocidental, e um novo paradigma para a proteção de direitos humanos no âmbito supranacional. Assim, tanto a decisão preliminar como a decisão sobre o mérito da causa representam um marco histórico. 

Relativamente às questões de natureza processual e no âmbito das objeções preliminares, o Tribunal de Justiça proferiu, a 27 de outubro de 2009, uma decisão que trouxe à colação várias questões de direito adjetivo relevantes não só para o caso concreto, mas também contribuíram para o desenvolvimento da jurisprudência deste tribunal sub-regional. No âmbito dos procedimentos preliminares, o segundo demandado UBEC levantou três objeções que foram julgadas improcedentes pelo tribunal. Desde logo, o segundo demandado alegou que o Tribunal de Justiça da CEDEAO tratando-se de um tribunal sub-regional apenas poderia aplicar as normas jurídicas que emanam da CEDEAO, e, por conseguinte, não teria competência para conhecer da violação de instrumentos jurídicos da União Africana, incluindo a Carta Africana. O tribunal entendeu que a competência para conhecer da violação de instrumentos jurídicos da União Africana encontra-se expressamente consagrado no artigo 4.º do Tratado Revisto da CEDEAO, segundo o qual “As altas partes contratantes, em busca dos objetivos declarados
no Artigo 3 deste Tratado, certificam e declaram solenemente a sua adesão aos seguintes princípios fundamentais: (…)
(g) respeito, promoção e proteção dos direitos humanos e dos povos de acordo com as disposições da Carta Africana dos Direitos Humanos e povos; (h) transparência, justiça económica e social e participação popular em desenvolvimento; (i) reconhecimento e respeito pelas regras e princípios jurídicos da Comunidade; (j) promoção e consolidação de um sistema democrático de governo em cada Estado Membro, conforme previsto na Declaração de Princípios Políticos adotado em 6 de julho de 1991 em Abuja; (…)”. 

Por sua vez, avançou-se ainda um argumento, clássico, se bem que em desuso no sistema africano sobre a não justiciabilidade dos DESC.  Para tal, alegou-se ainda que os direitos alegadamente violados, – incluindo o direito à educação – não eram justiciáveis, uma vez que a constituição da Nigéria não prevê um direito positivo à educação, mas antes, estabelece um regime que faz depender o gozo e fruição deste direito da adoção de políticas públicas pelos Estados federais. Contudo, o Tribunal de Justiça rejeitou a alegação considerando que a inexistência de um direito no ordenamento jurídico interno, não exclui automaticamente a sua aplicação no âmbito internacional. Finalmente, levantou-se ainda a questão sobre a legitimidade ativa da demandante, neste caso, questionando se a ONG SERAP poderia ser parte interessada no processo uma vez que não sofreu dano ou perda. Com base na doutrina da ação popular, o Tribunal de Justiça considerou improcedente esta alegação salientando que em litígios de interesse público, o autor da queixa não tem de necessariamente demonstrar que sofreu um dano ou perda pessoal para que possa der considerado como parte interessada no processo. 

Em 30 de novembro de 2010, o Tribunal de Justiça proferiu a decisão de natureza substantiva condenando o Estado nigeriano por violação do direito à educação nos termos da Carta Africana. O tribunal reconheceu expressamente a existência de um direito à educação gratuito e obrigatório a todas as crianças nigerianas. Consequentemente, o tribunal salientou que cabe ao Estado da Nigéria tomar medidas de modo a assegurar o cumprimento cabal das suas obrigações no que concerne ao direito à educação das crianças no país. No caso sub judice, o tribunal considerou que caberia ao Estado tomar medidas para provir as verbas necessárias de modo a assegurar o bom funcionamento do programa de educação no país. 

Este caso tem sido considerado um caso emblemático no sistema africano de proteção de direitos humanos, por inúmeras razoes. Desde logo, o Tribunal da Comunidade confirmou a justiciabilidade do direito à educação (e dos DESC), confirmando um dos marcos distintivos da Carta Africana sobre o princípio da indivisibilidade dos direitos humanos, ou seja, a indissociabilidade entre os direitos civis e políticos dos direitos económicos sociais e culturais. Por sua vez, ao estabelecer a sua competência para conhecer da violação de instrumentos jurídicos de direitos humanos da União Africana, o Tribunal de Justiça alargou o âmbito de proteção para os cidadãos da África Ocidental colmatando assim uma lacuna, pois no âmbito da CEDEAO não existe um instrumento jurídico sub-regional especificamente devotado aos direitos humanos. Por fim, o reconhecimento expresso da legitimidade ativa de ONGs para a litigância de casos de violação de direitos humanos no sistema sub-regional é de suma importância, sobretudo se tivermos em consideração que os desafios de acesso 

 

(1)

Para uma analise detalhada vide: Baldé, Aua “Uma Abordagem sui generis ao direito à educação na África Ocidental: o Papel do Tribunal de Justiça da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental” in Educação de Qualidade e Desenvolvimento na Lusofonia, Coutinho et al. (Coord.) April 2020 (http://cedis.fd.unl.pt/wp-content/uploads/2020/04/Educação-de-Qualidade-e-Desenvolvimento3-min.pdf

 

Aua Baldé

Membro do Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários (ONU)

Investigadora e Doutoranda, Universidade Católica Portuguesa