Marília Conti Higa, a 1 de Junho de 2021

O estudo do direito da educação, segundo uma soma de autores que se debruça sobre o tema (1), encontra suas origens ligadas ao surgimento e ao reconhecimento do direito à educação como um direito de todos e como um dever dos Estados, o que explica a recorrente associação entre as duas expressões como se fossem sinônimas. 

Entretanto, é possível perceber na literatura especializada, que se desenvolveu com mais intensidade a partir da década de 1970, uma clara evolução cronológica entre as duas expressões, partindo-se de um direito à educação como “forma de preparar o homem enquanto ser social e cultural” (2) para um direito da educação, inicialmente ligado à educação escolarizada, e decorrente da necessidade de regular o que a doutrina veio a denominar “relação juspedagógica” (relações que se desenvolvem dentro do processo educativo) (3). Assim, ainda que inicialmente possam ter sido as duas expressões entendidas como equivalentes (4), elas progressivamente assumiram contornos próprios, passando a segunda a englobar a primeira (5)

A proteção constitucional garantida ao direito à educação por Constituições como a mexicana (1917), a Russa e a de Weimar (1919) ensejou o desenvolvimento de princípios gerais, tais como o da gratuidade do ensino primário, da facultatividade do ensino religioso e da liberdade de atuação no campo do ensino (6), que contribuíram para que o direito à educação passasse a ter elementos próprios. 

A não restrição do direito à educação formal também contribuiu para a ampliação de seu âmbito de incidência, já que passou a compreender também “outras partes e relações, como os direitos e deveres dos professores – principais atores sociais da aprendizagem -, servidores, técnicos e administrativos, atingindo o exame de suas vantagens, cargos e salários” (7), o que exigiu a elaboração de normas cada vez mais específicas que fossem capazes de operacionalizá-lo e regulamentá-lo.

Ao corpo normativo – normalmente vinculado didaticamente aos ramos do Direito Constitucional ou do Direito Administrativo do qual derivava – destinado a regulamentar e operacionalizar o direito à educação (“legislação educativa”) associou-se, durante muito tempo, a expressão “direito da educação”. Assim, estudar a legislação educacional, que se multiplicou ao longo dos anos, significava estudar o direito da educação.

Contudo, o estudo dessa complexa legislação exigiu progressivamente conhecimentos cada vez mais específicos e que recaíam quer sobre princípios e relações cada vez mais especializados, quer sobre métodos e institutos não comuns a outros ramos da ciência Jurídica. Esse fato ensejou uma diferenciação entre o simples estudo da legislação educativa (normas, pareceres, decretos, portarias, estatutos, regimentos escolares, etc) e outro mais amplo, composto por legislação, doutrina, princípios e por uma metodologia própria de estudo (8). A este segundo campo de investigação denominou-se “direito da educação”.

Assim, nascido com o direito à educação e tendo evoluído para um estudo da legislação educativa, o direito da educação distinguiu-se de ambos e passou, especialmente a partir da década de 70, a não mais se limitar a deles, ganhando contornos mais largos, especialmente em função da sistematização de seu conteúdo e de sua autonomização enquanto ramo científico próprio dentro da Ciência do Direito, capaz de determinar a razão de ser do ensino, suas finalidades, seus sujeitos (destinatários e agentes), seu objeto, seu método, as formas de sua implementação no tempo e no espaço, sua estruturação física e política, seus recursos económicos, etc (9)

Assim, incluindo o direito à educação (“prerrogativa individual, coletiva ou difusa, uma faculdade em agir ou em exigir determinado favorecimento”) (10) como parte de seu “corpo iuris” (11) e centrando-se na relação juspedagógica a fim de conferir à educação uma visão jurídica, um novo ramo do direito foi estruturado: o direito da educação

O conceito de “direito da educação” como ramo autónomo do direito, porém, não é unívoco, e pode variar não apenas com os contextos (histórico, político e social) e sistemas jurídicos em que são desenvolvidos, mas também com a ênfase dada pelos estudiosos de uma determinada comunidade científica a um ou outro de seus elementos constitutivos, os quais englobam seus atores, instituições, processos, finalidades, prerrogativas, comportamentos, etc.

Da mesma forma, não é de forma igualitária que se vê o estágio de desenvolvimento doutrinário do direito da educação em diferentes sistemas jurídicos. Assim, é importante frisar que este artigo foi inspirado pelas contribuições feitas pela doutrina brasileira – dentre os principais autores, incluem-se Di Dio, Edivaldo M Boaventura, José Augusto Peres, Temístocles Cavalcanti, José Cretella Júnior, Antônio Sampaio Dória, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Pontes de Miranda, Cláudio Pacheco -, a qual se destaca no cenário mundial no que toca o estudo do tema. 

Por fim, no âmbito do projeto “A Cooperação para o Desenvolvimento e o Direito da Educação nos Sistemas de Ensino Superior dos PALOP: os Casos de Angola, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe”, em que esse blog é desenvolvido, um dos principais objetivos assumidos pela equipa de investigação envolvida foi o de contribuir para essa reflexão teórica a fim de repensar o conceito de direito da educação no contexto africano, especialmente nos sistemas jurídicos dos países escolhidos para a análise proposta, quais sejam, Angola, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.

 

1 Dentre outros, incluem-se José Augusto de Souza Peres (1987), Edvaldo Boaventura (1996), Alysson Jorge Moisés Macedo (2011) e Nelson Joaquim (2015).

 2 José Augusto de Souza Peres, “O Direito Educacional de suas origens remotas a uma tentativa de sistematização” (Universidad Pontificia de Salamanca, 1987).

3 José Augusto de Souza Peres, “O Direito Educacional de suas origens remotas a uma tentativa de sistematização” (Universidad Pontificia de Salamanca, 1987). E Edivaldo M Boaventura, “Um ensaio de sistematização do direito educacional”, Revista de Informação Legislativa 33, no 131 (1996): 31–57.

4 Nelson Joaquim, “O ensino e os desafios do Direito Educacional Brasileiro”, Direito Educacional in foco, 2015, 1–23, http://www.abrade.org.br/ensino.desafios.pdf..

5 A expressão “direito da educação” passou a englobar o direito à educação e as normas a ele relativas em seu mais amplo significado (educação escolar e extra-escolar). Jorge Miranda, “Sobre o direito da educação / Introduction to Education Law”, RFDUL/LLR, LX, 2019, 17–44.

6  Elias de Oliveira Motta, Direito Educacional e educação no século XXI: incluindo comentários à nova lei de diretrizes e bases da educação nacional e legislação conexa e complementar (Brasília: UNESCO, 1997).

7 Edivaldo M Boaventura, “Um ensaio de sistematização do direito educacional”, Revista de Informação Legislativa 33, no 131 (1996): 31–57.

8 Elias de Oliveira Motta, Direito Educacional e educação no século XXI: incluindo comentários à nova lei de diretrizes e bases da educação nacional e legislação conexa e complementar (Brasília: UNESCO, 1997).

9 José Augusto de Souza Peres, “O Direito Educacional de suas origens remotas a uma tentativa de sistematização” (Universidad Pontificia de Salamanca, 1987).

10 MACEDO, Alysson Jorge Moisés. “Apresentação e sistematização do Direito Educacional: condições que lhe conferem autonomia científica”. Revista do Direito Educacional 131 (23AD): 16–25.

11 Idem