Manuellita Hermes, a 12 de Maio de 2021

O Brasil precisa de se desfazer da tendência atual peculiarmente voltada ao enfraquecimento de direitos sociais e, mais precisamente, do ensino universitário público.

Nessa linha, pode-se falar na existência de uma verdadeira crise de hegemonia das universidades como centro de preparação das elites. Desenhadas em épocas medievais, as universidades reuniram estudantes de diversas partes da Europa em busca de uma formação diferenciada e sistematizada. A partir de então, houve sua difusão como modelo cultural sobretudo ocidental.

No Brasil, o estudo privilegiado, solene, elitista, restrito a uma nata da sociedade assistiu, séculos mais tarde, à implementação de políticas públicas em prol da implementação do princípio da igualdade. 

 

Contexto atual de violação do direito à educação e do princípio da igualdade

A atual realidade brasileira, porém, desde a disputa entre direita e esquerda no discurso político-eleitoral, revela uma narrativa com forte propósito de elitizar o ensino público superior, sob a justificativa de estar entregue à esquerda e à balbúrdia. À época das eleições presidenciais em 2018, houve rechaço à liberdade de expressão nas dependências universitárias, com utilização de Fake News e divulgação de atos e fotos supostamente realizados em universidades públicas brasileiras. Alegava-se afronta à moralidade e houve, durante a campanha eleitoral, a determinação de busca e apreensão no espaço universitário, a fim de fiscalizar ou banir manifestações e opiniões. Tal iniciativa foi objeto de decisão do Supremo Tribunal Federal, que a julgou inconstitucional (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF –  n. 548).

Durante a gestão presidencial iniciada após as eleições, foi minorada a memória dos êxitos acadêmicos, científicos e intelectuais das instituições de ensino superior. Tampouco foram prestigiados o princípio da igualdade e a mobilidade social proporcionada a partir do curso universitário. 

 

Política de ações afirmativas

Um exemplo a ser fornecido consiste na tentativa de revogação da Portaria que estipulava a reserva de vagas a negros indígenas e pessoas com deficiência em programas de pós-graduação de instituições federais de ensino superior. Em vigor desde 2016, a Portaria estimulava e regulava a criação de reserva de vagas em cursos de mestrados e doutorados. 

A ação ganhou imensa repercussão e levou ao ajuizamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF – n. 698, distribuída à relatoria do Ministro Gilmar Mendes, na qual se pretendeu a declaração da inconstitucionalidade do ato revogador da Portaria Normativa n. 13 de 2016. A petição foi ajuizada ao fundamento de violação da igualdade material, do direito fundamental à educação e da vedação do retrocesso em relação a direitos fundamentais. Após manifestação da Advocacia-Geral da União informando que o ato impugnado teria sido revogado pela Portaria n. 559, de 22 de junho de 2020, do Ministro de Educação Substituto, o Relator julgou prejudicada a ação por perda do objeto. Antes do dispositivo, porém, construiu fundamentação que fez menção à ADPF 186 e a outros precedentes da Corte sobre o tema, bem como afirmou que “a obstaculização do acesso a programas de pós-graduação a negros significa negar-lhes o acesso a melhores postos de trabalho, contribuindo assim para uma indesejável manutenção do racismo estrutural que a legislação, com respaldo da jurisprudência do Supremo, visa a superar”.

Vale ressaltar que, no Brasil, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADPF 186decidiu acerca da constitucionalidade da reserva de vagas com base em critério étnico-racial, as famosas cotas, para ingresso em instituição pública de ensino superior. Garantiram-se a observância do princípio da igualdade material e a reversão do histórico quadro de desigualdade da sociedade brasileira, refletido também no âmbito acadêmico.

As recentes medidas e discursos de desprestígio voltados às universidades públicas brasileiras caracterizam o talento histriônico da civilização do espetáculo, caracterizada pela banalização das artes e da cultura, pelo triunfo do jornalismo sensacionalista, pela frivolidade da política e, muitas vezes, pelo silêncio dos intelectuais. 

São violadas normas constitucionais e internacionais que buscam proteger: a garantia do desenvolvimento nacional (art. 3º, da Constituição Federal – CF); a livre manifestação do pensamento (art. 5º, IV, CF); o direito à educação (arts. 6º e 205, CF); a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (art. 206, II, CF); o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino (art. 206, III, CF); e a autonomia universitária (art. 207, CF). De forma clara, depreende-se a tentativa de provocar o isolamento político das universidades públicas, bem como dos seus corpos docente e discente. 

O tema envolve a implementação e a manutenção dos direitos sociais. De um lado, há o argumento da crise financeira, que impediria a concretização de políticas públicas direcionadas ao ensino universitário; do outro, a necessidade de implementação gradual e sem nulificação dos direitos sociais. Deve-se, porém, desmistificar os custos dos direitos fundamentais e garantir a gradualidade do processo de concretização (ADPF 45 MC DF). 

A Proteção do Sistema Interamericano de Direitos Humanos

No contexto regional, cabe lembrar que o país é Estado-Parte da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – CADH – (ou Pacto de San José da Costa Rica), que possui disposições normativas cruciais quanto ao tema em exame, a exemplo da liberdade de pensamento e de expressão (art. 13) e do desenvolvimento progressivo dos direitos econômicos e sociais (art. 26). Embora os direitos sociais não possuam um rol próprio na CADH, uma vez que só foram objeto de previsão específica no Protocolo de San Salvador ou Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais –  assinado em 17 de novembro de 1988 e em vigor desde novembro de 1999 – , o artigo 26 da Convenção Americana já estabeleceu, desde o início do sistema interamericano de proteção aos direitos humanos, a necessidade de avanços progressivos em relação aos direitos sociais na região. 

O Protocolo de San Salvador, a seu turno, enriquece a proteção ao determinar a obrigação de adotar disposições de direito interno que implementem as normas interamericanas (art. 2), bem como a obrigação de não discriminação (art. 3). Prevê, também, o direito à educação, à luz do pluralismo ideológico, da participação efetiva em uma sociedade democrática e pluralista. Estabelece que o ensino superior deve ser igualmente acessível a todos e com implantação progressiva do ensino gratuito (art. 13). Ademais, o seu artigo 19 traz expressamente a justiciabilidade do direito à educação.

Como visto, o Supremo Tribunal Federal tem desempenhado um papel fundamental na garantia da concretização, da manutenção e da progressividade do direito social à educação. De todo modo, vale lembrar que uma vez ausentes ou falhos os mecanismos domésticos de proteção ao direito fundamental à educação, é possível acionar-se subsidiariamente o sistema interamericano de direitos humanos. Já existem, em verdade, precedentes que, desde logo, indicam o posicionamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) quanto à matéria. 

No caso Cinco Pensionistas vs. Peru (2003), a Comissão Interamericana de Direitos Humanos procedeu provocou a competência contenciosa por meio de solicitação à Corte do reconhecimento da violação do artigo 26 da CADH pelo Peru. A situação envolveu a redução arbitrária das aposentadorias das vítimas, com modificação no regime previdenciário. A Corte IDH entendeu que houve, pelo Estado, o descumprimento do seu dever de promover o desenvolvimento progressivo de seus direitos econômicos, sociais e culturais – DESC. Assentou que o Peru não garantiu o desenvolvimento progressivo do direito à previdência social. Foi a primeira condenação relativa à violação do artigo 26 do Pacto de San José da Costa Rica.

O caso Lagos del Campo vs. Peru (2017), por sua vez, envolveu a liberdade de pensamento e de expressão, com aplicabilidade no contexto laboral. Considerou-se que as declarações do Sr. Alfredo Lagos del Campo eram de interesse público e contavam com um nível reforçado de proteção. A Corte IDH declarou que houve violação da liberdade de expressão (arts. 13 e 8 c/c art. 1.1 da Convenção); direito à liberdade de associação (art. 16, CADH); desenvolvimento progressivo dos DESC (art. 26, CADH).

 

Conclusão: democracia e proibição do retrocesso

A redemocratização que caracterizou a América Latina na década de 80 encetou um período paulatino de transição democrática, que demandou a elaboração de novas Cartas Constitucionais e formação de instituições fortes que garantissem os direitos humanos. A incorporação de tratados internacionais também foi importante como meio de internalização de novos marcos jurídicos como reforço democrático e humanitário.

No Brasil, constata-se a desconstrução de conquistas relativas à igualdade material e ao pluralismo no ensino público universitário. Neste momento, o bom funcionamento dos sistemas judiciais nacionais é essencial para uma eficaz proteção ao direito social à educação. À luz da subsidiariedade, os mecanismos de proteção do sistema interamericano de proteção aos direitos humanos são também uma barreira ao solapamento das políticas públicas orientadas à efetivação dos direitos humanos, em garantia do progressivo avanço e da proibição do retrocesso social. 

 

Manuellita Hermes é Doutoranda em Direito na Università di Roma Tor Vergata. Mestra em Sistemas Jurídicos Contemporâneos pela Università di Roma Tor Vergata. Especialista em Justiça Constitucional pela Università di Pisa, e em Direito do Estado pela Universidade Federal da Bahia. Procuradora Federal (AGU). Assessora de Ministro no Supremo Tribunal Federal (STF). Docente da Pós-graduação lato sensu em Direito Constitucional no Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. Membro da International Association of Constitutional Law – IACL. manuelitahermes@gmail.com. https://orcid.org/0000-0003-4140-0820.